COISAS QUE ESTRAGAM OS DENTES
lulu mendes
1. Faço pelo Gabriel o que faria por mim mesma. Compro tudo o que ele gosta, doces, discos cor-de-rosa e livros antigos, a obsessão da vez. Antes eram balões coloridos, aqueles de festa de aniversário. Agora Gabriel flutua nas ideias dos autores corajosos. Parece uma senhora de setenta anos no corpo de um adolescente, mas gosto disso, me sinto segura e ele também. Não tem presente melhor que uma mãe possa dar ao filho que cumplicidade, onde que eu ouvi isso? Acho até que foi dele.
Já dobrava a esquina quando Douglas começou a berrar como um porco. O Gabriel não é seu filho, disse no carro. Ele fica puto quando eu digo essas coisas. Desta vez pareceu real, talvez por eu querer muito que fosse verdade. Vejo Douglas em cada detalhe físico de Gabriel, mas não passa da casca. O que tem dentro do meu filho é superior.
Tropeço algumas vezes na rua de paralelepípedos e não olho pra trás; Douglas, que poderia descer rasgando com o carro até mim, prefere latir duas quadras acima como o inútil que é. Gabriel tá acordado, certeza. Tá lendo os livros que finjo conhecer nos sebos entupidos da José Paulino. Hilda, Emily, Ana Cristina alguma coisa, só os corajosos, diz ele. Também pode estar dançando. Britney. Outro dia, peguei ele de salto, rodopiando pela sala vazia. Ficou sem graça como sempre fica quando eu o vejo dançar. Tava estudando inglês, ele vai dizer.
- Ester, onde você estava? Ouviu esse grito? Eu hein, tinha um doido por aí xingando, cê ouviu? — perguntou minha mãe quando entrei.
- É o Douglas. Cadê o Gabriel?
Abri a porta do quarto, e Gabriel fingia sono. E se fingia é porque alguma coisa estava errada. Ele tem um mundo próprio e mamãe não sabe lidar com isso, mas eu sei. Somos cúmplices, eu e ele. Somos um só.
- O que aconteceu? — pergunto
- Vai tomar banho e colocar o seu pijama, Ester. Se recomponha. O assunto é sério.
- Ele usou meu top de novo? Ou foi aquela sua echarpe feiosa? — tentei ser firme, mas a voz denunciava a tequila.
De repente mamãe pareceu mais velha do que era. Como se houvesse um peso no ar comprimindo toda a sua pele, enrugando-as mais. Ela se senta na poltrona da sala e, pela primeira vez, a vejo chorar fora da igreja. Minha mãe só chora na igreja e em enterros. Na igreja, chora por manter suas promessas intactas, mas chora ainda mais por papai não ter feito o mesmo. Nos enterros, chora pela vida eterna. Ter fé deve ser isso: acreditar naquilo que não se vê. Eu não acredito nem no que eu vejo, que dirá…
- O Gabriel não me ouve e você precisa ajudar, Ester. É um menino bom, mas desafia tudo, tem aquele jeitinho que eu não sei, só Deus sabe o que ele pensa de verdade. Vocês precisam voltar…Voltar para o Senhor porque o mundo é… O inimigo é…
Sinto um cheiro de coisa queimada e morta, de onde vem?
- O que o Gabriel fez, mãe?
A tequila rodopiou pela minha mente, dançou Britney Spears. Vomitei antes da resposta.
- Ele tem que se resolver, Ester. Ou fica mais perto do filho ou some de vez!
- Ele não liga, mãe, você sabe disso. Nunca ligou pro Gabriel. Ele não liga nem quando precisa ligar. Não ligou no aniversário, e não ligou no natal.
- A gente não comemora natal.
- Não interessa.
Minha mãe se levanta certa do que dizer, como se tivesse decorado:
- Enquanto você morar nessa casa, Ester, você vai para a igreja comigo, e vai levar o seu filho junto. Vai acordá-lo aos domingos, passar a camisa de algodão branca e vesti-lo com a calça de alfaiataria que eu comprei. E você, nada de microssaia. Vai usar uma roupa decente, aquele vestido que eu te dei no seu aniversário do ano passado, o florido azul celeste com manguinha tá ótimo pra amanhã, e nós vamos juntos. Você me deve isso, Ester. Você sabe que me deve isso.
Eu queria ter calado a boca dela. Sabia que Gabriel ouvia, sabia o que isso faria com ele. Porque eu mesma ouvi por trás da porta as coisas que fingi não saber a vida toda.
- Vamos à igreja, mãe. Vamos amanhã.
2. Ângela orava todas as noites antes de dormir. Pedia que Deus colocasse juízo sobre a filha, que deveria assumir a responsabilidade e achar um marido decente. O neto precisava de uma figura masculina. Como é que ele vai saber das coisas que eu não sei explicar a ele, meu Deus? E se sonhasse, que não fosse de novo com o ex-marido e a vagabunda. Mas Deus parecia testá-la: a filha arrumava um namorado diferente todo fim de semana. Saía na sexta, voltava no domingo de manhã com um livro vulgar ou algum CD cor de rosa que fazia os olhos do Gabriel brilhar. Será que ela não entendia o que estava fazendo?
Gabriel já não queria mais saber de andar com ela por aí. Não vai à igreja desde os nove, e acaba de completar doze. Doze anos já sabe das coisas. O que ele sabe? O que ele quer? Menino desregrado. Dorme tarde. Come na hora errada. Deus, livre esse menino do açúcar. Todo dia um assalto na despensa, e só besteira. Onde ele vai parar? Se pelo menos o avô desse alguma atenção. O pai… eu não quero nem pensar. Aquilo ali nem é pai, é encosto, pensava Ângela. Pensava e dizia, dizia sem pensar. Falava sozinha.
Quando pegava no sono, Ângela sonhava com Leonardo na sua cama, no banco de trás do seu carro, no sofá da sua sala, e mesmo no púlpito da sua igreja. Sempre nu. E a vagabunda por cima, ou por baixo ou pior: com a coisa na boca, olhando pra ela.
Então acorda em sobressalto, o corpo suado, e ora mais uma vez. Depois, troca os lençóis e as fronhas, que de repente parecem contaminados pelo pesadelo. Eu o perdoo. Eu já o perdoei. O pecador o senhor perdoa, ela pensa, o pecado, não. O pecado é repugnante. Amém. Ela ouvia a voz de Ester, sua filha, dizer “amém” aos cinco ou seis anos. Amém costumava ser a palavra favorita de Ester.
Na feira de quinta, ela estava decidida a comprar todas as frutas e verduras que o neto não comeria, mas as maçãs estavam lindas e Gabriel adora torta de maçã. Dessa vez não faz mal, ela pensa. E ele é um menino bom. Tira boas notas. Limpa a casa inteira. É gentil. Ângela sorri com a ideia de agradar o homem que o neto vai ser.
Escolhe as melhores maçãs e nem se alonga na feira. Em casa, deixou a sacola em cima da mesa limpa; estava tudo limpo, limpíssimo. Meu menino, tão caprichoso.
Ângela para de cantarolar seu hino no instante em que abre a porta do quarto. Gabriel olhava para ela com a coisa na boca. Olhava como aquela vagabunda.
3. Era sempre assim: toda sexta à noite minha mãe vestia uma calça coladinha cintura baixa e suas blusas de alcinha, daquelas que mostram a barriga. Você vai dormir fora?, perguntava. Não, meu amor, eu volto ainda hoje. Vou trazer uma surpresinha pra você. Só não acorda a Mama, tá? Vai descansar. Eu sempre fico com a Mama. Ela não é exatamente divertida porque envolve Deus em tudo, e ela é o tipo de pessoa que leva as coisas de Deus a sério.
Outro dia eu acordei no meio da noite com muita vontade de comer um doce. Fui de fininho até o balcão e tentei abrir uma lata de leite condensado com uma faca. Acho que foi isso que acordou Mama, o barulho da faca batendo na latinha. Que burro. Na próxima eu tento de novo com o abridor. Eu erguia a lata e esperava aquele leite condensado todo cair na minha boca quando Mama acendeu a luz da despensa. Ela olhou pra mim do mesmo jeito que olhou naquele dia com o Breno, irmão da Camila. Desapontada. Furiosa. E também com pena. Como uma filha de Deus.
O Breno, irmão da Camila, é bonito, mas extremamente burro. Ele é três anos mais velho e está na mesma turma que a gente. Breno me chama de Aurélio porque eu sempre levanto a mão pra dar a resposta certa nas aulas, e quando a Mama me deixa ir na casa da Camila eu dou um jeitinho de passar pelo quarto dele. A Camila me disse que um dia entrou lá, e ele tava trocando de roupa. Parecia um pêndulo, ela disse, mexendo de um lado pro outro.
Não tinha ninguém em casa na tarde em que a Mama pegou a gente no meu quarto. Era uma quinta, e às quintas ela vai à feira. Eu disse ao Breno que o ajudaria com a lição de português, mas eu queria mesmo era ver o pêndulo. Coloquei a mão lá e ele gostou. “Quer lamber?”, “A-ham”. Alguma coisa se aproximava enquanto eu sentia o gosto dele. O mesmo gosto na despensa acesa, o mesmo gosto das sextas à noite, minha mãe saindo de fininho. O errado era doce: de uma doçura venenosa de tão funda.
Desde aquele dia, Mama nunca mais comprou leite condensado e “não vai mais voltar na casa daquela menina”, como se a Camila tivesse culpa de alguma coisa. Minha mãe voltou a usar saia até o pé e blusa com manga. Às sextas à noite e nas manhãs de domingo íamos ao culto pedir perdão, e esquecer.
Lulu Mendes é jornalista, produtor e roteirista. Nasceu em Campinas, em 1997, e se mudou para São Paulo em 2016 para cursar Comunicação Social na FIAM-FAAM. Escreve contos, ensaios e colunas especiais — alguns de seus textos podem ser encontrados em sites e revistas como Cult e FFW. Atualmente colabora em projetos publicitários e jornalísticos para o G1 e Gshow.